É tão difícil?

 
 
Sim, sou viciada em sexo, bebida e arte.
Mas isso todo mundo já sabe.

Sentada no escuro da sala beijando uma garrafa de Heineken

Eu pensava no que ela disse. Eu queria beber até dormir. Mas essa era a última garrafa e eu bebi bem devagar. Se bem que talvez eu já esteja meio bêbada. Talvez estivesse antes de começar a beber. Eu realmente não devia beber. Mas obedecer não é meu forte. Ela sabe.

Antropofagia

Sabe, eu queria comer você. Não num sexo vulgar. Eu queria realmente devorar-te. Morder sua carne. Sentir sua maciez entre meus dentes. Eu queria afundar minha boca aberta em teu corpo. Deixar esvair-se o sangue, enquanto tento alcançar teus osso. Serrar teus nervos. Com as unhas separar as veias e as artérias, que por decadente nojo eu não comeria.
Eu quero morder-lhe os órgãos vitais. Crus. Sem tempero ou vergonha. Abrir teu coração com as unhas. Despedaça-lo com as mãos. Sorrir, enquanto teu sangue me mancha a pele e os pedaços de tua carne descem pela minha garganta.
Então, sentada no chão, eu me veria ensanguentada. Sentada sobre os teus restos, ossos e pedaços espalhados de carne. Ai eu juntaria esses pedaços que eu não consegui comer, para cozinhá-los. Eu os colocaria numa grande panela com bastante água. Lavaria o sangue e temperaria. Eu faria um colar de teus ossos limpos. E o quanto a tua carne cozinha, seria o jantar. Com vinho e batatas.

Sem título 4

Eu achava era graça de quando eu, espevitada, começava a dar meus escândalos por achar alguma coisa bonita e você, tentando parecer sério dizia "quieta o faixo, menina".

Eu achava era graça quando você passava pela sala e satirizava os filmes que eu tando amava. Eu brigava, mas por dentro eu ria.

Eu morria de rir quando você gritava pela bola que nem perto da rede do Bahia passou e me culpava dizendo que "torcedora do Vitória por perto dá azar".

Eu morria de rir quando você reclamava da quantidade de trabalho que lhe davam e depois dizia entender "por que sendo um funcionário tão bom, é natural receber responsabilidades".

Eu não aguentava o riso quando você elogiava com ironia a vizinha que, com suas roupas curtas, mostrando o que não devia, pensava estar linda.

Eu não aguentava o choro quando você viajava.
Eu não aguentava o choro quando você chegava irritado e não queria me contar o que aconteceu, 'pra não me preocupar'.
Eu não aguentava o choro quando você, escondido no escuro do nosso quarto, via fotos da sua falecida mãe.
Eu não aguentava o choro quando você olhava as crianças brincando no parque, triste, por que eu não podia lhe dar teu filho.

Mas, mais do que tudo isso, eu não posso aguentar a vida sem você.
Desculpa, mas tenho que ir.
Ir pra longe dessa vida.

um poema em pausas.

estou me rasgando.
é aquela velha melancolia.
guardada. grudada.
mas hoje eu não quero chorar.

tinta


eu ouvi enquanto escrevia: Malu 4x4, do Marcelo Camelo


Ele afundou a mão direita no balde de tinta vermelha. O vermelho vivo escorria pelos seus braços. Desceu o indicador pelas costas dela. Ela estava nua. Ele também. Não se importavam. A mão dele escorreu até a barriga dela. Ela arrepiou. Abraçou-a. Subiu aos seios. Ela mordeu os lábios.

E ele afundou a mão esquerda no balde de azul marinho. O vermelho se misturou com azul. Violeta. Seus dedos finos e longos caminhavam pela pele da moça. Limpou o suor da testa. Seus cabelos castanhos foram tingidos pelo azul. A barba pelo violeta. Desceu às pernas. Pegou um pouco mais de vermelho. Uma textura ondulada começou a se formar em suas vértebras torácicas. Limpou a mão esquerda na parte interna da coxa dela. Afundou a ponta dos dedos na tinta verde. Pontuou sua lombar. E foi caminhando lentamente até sua virilha. Ela estremeceu. Soprou em seus ouvidos. 'Calma. Não terminei.'

Pegou o pincel stroke, o de cerdas longas e macias. Passou na aquarela sobre a mesa. O amarelo. E tracejou suas vertebras. Uma por uma. Com um branco neve, desenhou reticências. Pintou os lábios de bordô. Beijou-lhe a nuca. Virou-a. Sorriu, com seus lábios bordô. Ela sorriu em resposta. Beijou-lhe o colo, os seios e o ventre. Depois levantou.
 Já era a hora de borrar o desenho.

Sem título 3

Vejo os pés a rastejar na porta.
tchac. tchac. tchac.
Escurece a greta ( aquela mesma rachadura na janela).
Seria um olho? Quem vê?
Quem me poderia ver?

Ouço o som de passos a descer a escada.
Passos rápidos.
Ele me toma.
Troquei de ato.
Não me interessam mais os passos.
Não enquanto suas mãos passeiam pelo meu corpo
semi nu, jazido no sofá.

Passos rápidos na porta.
Troca.
Mas ele toma minha atenção.
Sua língua a descer pela minha barriga.
- Ela não virá agora. - me diz.
E me toma.
Dentro de mim.
Pulsa.
Grito.]

Aaaaah.
- É ela!
- Quem se importa? -  ri.
Ele não. Eu deveria.

Mas seu pulsar...
Lento. Rápido. Rápido. Lento. Puxa.
Oh!
Assim!

Esqueço dos pés.
Dos passos.
Do rastejar na porta.
Ofegante.
Grito.

Aaaaah!
Grito.
Não pare!
Oh! Por Deus, não pare!
Aaaaah!
Orgasmo.
E cair em seus braços.

- Ela não chegou. - me diz, desdenhoso.
Sorri. Ele acertara mais uma vez.

Carta de mim a quem quer que esteja lendo

Não nos vemos há um bom tempo, não é mesmo? Eu queria te ver, mas como sempre, culpei as coisas. Eu sei, você odeia quando eu digo que estou presa pelo tempo. Mas, não é que não confie em você, é que realmente não consegui te escrever antes. Agora as coisas estão mais calmas. Larguei a faculdade. É eu não tenho juízo (e me orgulho disso você sabe). Troquei a perspetiva de morar no Corredor da Vitória para viver de arte (e morrer de fome). Já estou com alguns projetos, mas parece que ninguém ouve minha voz. Eu sabia que isso ia acontecer, mas ninguém está preparado pra quando acontece. Sabe aquela sensação de ter nas mãos um tesouro que ninguém vê? Enfim.

E quanto às minhas aventuras com o moço dos olhos verdes, estão me arrastando pro buraco. Ele precisa deixar que eu me afaste. Odeio sentir que estou presa a alguem, você sabe. E eu estou presa a ele, nem consigo odiá-lo em paz. O que você acha que eu devo fazer? Ele diz que gosta de mim, mas... Talvez seja medo mesmo. Mas e daí? Você me conhece, eu não posso com isso! Enfim.

Mas e você como anda? Quem tem feito? Como se sente? Falei tanto de mim que esqueci de dizer o quanto pensei em você. As vezes na rua, eu comentava com outros o quanto sentia sua falta. Espero que também tenha sentido falta de mim. Depender de você eu gosto. É um dos poucos sabia, devia ficar feliz com isso. Enfim.


Atenciosamente,




ps. não vou lhe prometer que agora eu volto de vez. já fiz isso muitas vezes. mas, mesmo que eu parta de novo, lembre-se que eu sempre volto.

renew

Eu já fui muita coisa. Já disse muita coisa. Quis muita coisa. Mas hoje eu quero só ser eu, pode ser?
Eu já me orgulhei. Já sorri. Já até esnobei. Agora eu quero só andar, pode?
Hoje eu descosntrui tudo. E na segunda-feira a vida estará melhor.

Mas não

- Olha, eu só tô ligando pra dizer que eu não me arrependo de nada do que eu disse ontem. E que realmente acho que seria melhor cada um seguir seu próprio caminho.

Foi assim que ela arrasou meu coração. Esmagando a frágil esperança de que naquela ligação ela dissesse para esquecer a briga, dissesse que me amava que me queria de volta. Mas ela não disse.

Ela terminou dizendo que ia dar um tempo pra eu me recuperar e depois ia buscar as coisas em nossa casa no Rio Vermelho. Ela disse que ia voltar para o apartamento no Imbuí. Ela disse que tudo ia ficar bem. Mas eu não acreditei em nada do que ela disse, por que ela disse que me amava.

Eu quis xingá-la de todos os nomes possíveis. Eu quis chamá-la de mentirosa. Quis perguntar o que aquele ser frio tinha feito com minha noiva. Quis implorar perdão, que me perdoasse pelo erro que ela cometeu. Quis matá-la. Quis pelo menos bater o telefone. Mas não fiz nada disso. Assenti e esperei ela desligar.

Ela veio, uma semana depois. Bateu na porta, disse que tinha perdido a chave. Parada à porta do quarto, me senti mas um móvel ao vê-la arrumar as coisas. Ela, concentrada em juntar tudo que havia comprado do próprio bolso, sequer olhou meu rosto. Nem sequer viu meu desespero mal contido nos olhos marejados. Meus olhos que quase gritavam o grito que a garganta, doída, não tinha mais forças pra deixar sair. O grito que dizia: 'não me abandone!' Mas não gritei.

Ela se foi. E já fazem dois meses que vivo de pão, chocolate, vodka e rum. Mas não morri. Ainda.

Sobre esses dias II

Eu acho que eu só finjo ser eu.
Penso que sou qualquer outra pessoa assumindo o papel de alguem que, se eu fosse eu, eu gostaria de ser.

Estou viva. Mas vez por outra penso meu estado natural, de morte.
Confortavelmente morta.
Deixando que o outro ser assuma meu corpo, que a carne se dirija no modo automático. a carne anda, come, conversa, sai, volta.

Eu, morta, a observava.
Pintava (com minhas tintas coloridas e invisíveis).
Cantava (pra ninguém ouvir).
Ouvia (desde as músicas até o silêncio)
Dançava (só).

Não me sinto muito confortável nesta condição de pessoa viva.
Quem sabe eu morro de novo.
Quando olhou às putas encostadas no muro, viu Nina. Sorriu com desprezo. "Aquela puta desgraçada! Como pôde fazer isso comigo?!", pensou. Olhou novamente. (Agora ela o viu). Sorriu novamente. (Dessa vez com cinismo). Levantou a mão esquerda e estendeu dedo médio.
- Punheteira - gritou. E acelerou (fazendo pneu cantar).

A quem possa interessar

Eu não sou escritora. Nem poeta, nem artista, nem nada dessas coisas. Só os admiro.
Eu não sei de onde alguns tiram a estúpida idéia de que eu eu sou uma boa menina.
Eu não tenho sentimentos. E, se eles existem, eu os ignoro propositalmente.
Eu me deixo conhecer até certo ponto. E os que ousam ultrapassar esse limite não raro se arrependem.
Não permito que se apeguem muito ou que se tornem dependentes de mim.
Apesar de tudo, eu não me acho uma pessoa ruim. Os maus são muito piores do que eu.
Eu só não presto.

É claro que eu também poderia falar das minhas qualidades, mas eu não sei fazer isso e nem mesmo sei quais são elas.


só agora

Sabe, agora eu só queria paz.

Um espaço sem esses que não sabem do que eu to falando, os que não não nem aí por que eu to procurando.
Uma casinha pequena pra eu poder ser uma velha chata, pra eu poder ser uma jovem doida. Uma doida varrida, uma artista, uma pequena pervertida.
Quer me ver no meu melhor estado? Quer me ver toda suja tinta e dançando? Bêbada e falando obscenidades? Eu poderia ficar nua e permanecer dançando se você pedir. Só me tire desse inferno, que eu não aguento mais ser uma menina certinha.

mudança de planos

- Você vai embora amanhã que horas? - enquanto acariciava os cabelos do rapaz deitado em seu colo.
- Vou amanhã não, vou ficar mais um pouco contigo. Quer?
- Faço nem questão! - ela desdenhou.
- Então eu vou embora. - brincou.
- Mentira! Fica.

Ela ela o beijou. E ele tirou sua blusa. Ela rasgou-lhe as costas. Ele se afogou-se em seus peitos. Ela mordeu os lábios. Ele lhe mordeu a coxa. Ela desabotoou-lhe a calça. E terminou com a cabeça dele entre as pernas dela. Isso por que o marido dela chegou e os dois terminaram mortos.

entrespasmos

estou velha. estou cansada.

enfraquecida. estou de vigília.

sabe o remédio? existe cura?

envelheci. 50 anos em 3 meses. quem me conhece sabe. não sou eu.

não me espere, não vale a pena. não me procure, eu não presto.

se só de vez em quando eu falo, quanto a isso eu me desculpo. agradeço.

estou aqui, saiba disso. estou aí. estou por você. todos vocês.

estou. sabe Deus até quando.

logo, logo

Um dia você vai perceber que tudo isso é fantasia. Um dia você vai ver o quanto foi irracional me fazer essas promessas e juras de amor que você não poderá cumprir. Um dia você vai se cansar de me procurar, me procurar e me procurar enquanto eu apenas me permito ser achada. Você vai para e perceber que essa relação não tem futuro. Você vai ver que eu não te amo da mesma maneira que você me ama, embora eu te ame muito. E nesse dia, ah, seu moço, nesse dia, eu estarei aqui pra lhe pôr no colo.
a vida parece aquelas montanhas russas.

vai mudando... gira de cabeça pra baixo... dá rodopios...

a gente grita, chora, se desespera...

mas no fim, ela nunca sai dos trilhos.

Sem título 2

Ela se aproximou, lentamente, com seu vestido negro. Percorreu com o olhar o salão e deixou escapar pelo canto da boca um meio sorriso: seus olhos se encontraram com os de Alejandro. Ele a brindou, ela se virou abruptamente. Ele, sentado numa mesa lateral, contava piadas para um grupo de executivos. Ela, sentada num banco no bar, bebericava o wisky oferecido pelo cavalheiro na mesa em frente, observando sua sucessora que cantava no palco. Vez por outra, seus olhares se cruzavam. Agora era ele quem a provocava, ela sorria. Os dois adoravam aquela brincadeira.

à perversão de minha poesia

Foges de mim?
Eu tinha um verso a recitar-te,
Mas esqueci.
O tempo apagou-me a memória.
E tua face apagou-me o resto.

A expectativa de ver-te corroía-me os ossos.
A cada passo, vi teus passos.
A cada rosto, vi eu rosto.
A cada olhar, teus olhos.
Brilhantes olhos.
A desabrochar nos meus.

Eu vi teus seios.
Firmes, doces.
Os quais minha boca devora,
Em meus mais loucos e pervertidos sonhos.
Qual proibido fruto proibido da árvore do paraíso.

Não me deixes mais.
Que a febre da sua ausência provoca-me febre.
Que tenho orgasmos por fechar os olhos
E ver tua boca.
Tua boca entreaberta pronta a desposar-me.

Sou homem, sou mulher.
Sou as pernas abertas que te querem.
Sou o pênis que te deseja.
Em todos os seus líquidos, me banho.
Te rasgo, te tomo, te devoro.

o mundo

às vezes o mundo é algo enjoativo.
às vezes o mundo é algo tedioso.
às vezes o mundo é sagaz, atroz, audaz, veloz.
terrível, perigoso,
romântico, nojento.
doce. amargo. ácido. sangue!
às vezes eu me esqueço de que o mundo é  mundo.

(escrevi. e não sei o que significa. espero que alguem possa me dizer.)

mesa de bar

- Esperando por alguem?
- Sim.
- E esperava por mim, imagino.
- Odiaria ter que lhe dizer a verdade.
- É a verdade que está esperando por seu marido, noivo ou namorado?
- É a verdade que estou esperando por outra pessoa.
- Sendo assim eu posso me sentar. Deixe-me perguntar, pois seus mistério não me deixou escolha, a quem espera?
- Minha mãe.
- Oh, sim. Minha futura sogra.
- Que ela não saiba disso, embora seu charme não me permita contradizê-lo.
- Charles.
- Juliet.
- Um café?
- Um vinho.
- Excelente escolha.
- E para que tanto mistério?
- Para manter o personagem.
- Decerto, ele precisa de quem zele por ele.
- E estes somos nós, pressuponho.
- E o nosso vinho.

presságio de tempestade

Os ventos oscilavam, tempestuosos. E daquele banco a garota podia ver muito bem o mar. As nuvens no céu, presságio da tempestade, bem podiam representar o ano que passou, a vida que passou e o menino que morreu.
Vai chover forte... Saia daqui, menina gritou um velho carregardor  Além do mais porto não é lugar de criança. Você pode se machucar.
Não sou mais criança resmungou. Mas o velho não estava mais lá, e mesmo que estivesse não a ouviria. Eu matei meu filho.

Miedo

Eu tenho medo.
Tenho da hora em que esse sonho acaba.
Tenho medo da hora em que você descobre a verdade.
Tenho medo do dia em que você se cansa.
Tenho medo daquele que virá te buscar.
Tenho medo do tempo, medo do dia, medo da hora, medo daquele, medo de tudo.

Por isso nunca te beijei, nunca te toquei, nunca fizemos sexo, nunca dormir em sua sua cama, nunca sequer falei contigo.
Lhe admiro a distância, por que sei quando tomar-te em meus braços, já poderei prever o dia em que matarei todo seu amor.

Quanto a estar

Eu buscava algo que não sabia o que era. Não poderia saber, nem deveria. Mas procurava com afinco, escavava, rebuscava, dilacerava. Como se não tivesse controle, agi como louco. Mas não podia.
Talvez fosse poeta, mas não me atreveria a dizer. Talvez fosse artista, mas não haviam travessuras. Cerquei-me de flores e fúria. Matei-me diversas vezes antes que viesse a vontade de ressuscitar. eu quis fugir, mas nunca tive coragem. ele me sorriu, embora não devesse.
O que você procura mais exatamente?
Um sonho.
De que tipo?
Um que seja doce.
Talvez só precise andar.
Talvez eu só devesse mesmo sentar à distancia e esperar. e ver a água. quem sabe o tudo não fosse tão suficiente como antes parecia ser. Eu me perdi.
Você consegue respirar as estrelas?
Eu poderia lhe dizer tudo o que amo e ainda assim não seria suficiente. Como entre os cálices dessa noite. Vaga escuridão. Mas então a água trás o som da luz. Eu queria estar só. Eu pedi para que assim fosse, mas agora não me satisfaz. O lobo. Ouço todos os gritos encerrada na serenidade do meu silêncio. Mas perdi todo o ânimo.
que posso fazer para ser feliz?

O artesão

Era um homem odioso, de olhar impenetrável e hábitos imundos. Sempre considerei difícil conciliar sua arte com seu gênio. Não foram poucas as vezes que planejei mata-lo. Asfixia-lo em seu sono, envenena-lo em seu almoço, cortar sua garganta quanto lhe cortava o cabelo...

Da minha menina

- Imagina que eu andei a sua procura, meu rapaz!
Ele sorriu. Era mentira, de fato. Mas quê custava acreditar? Era uma mentira tão bonita...
Fitara o relógio por toda manhã. Era o mesmo que dormir, mas isso não interessa. Importante é dizer que na noite anterior, ele havia revirado toda aquela cidade, me buscando em todas as ruelas, indo até os bares mais sórdidos - e olhando até debaixo dos balcões - com a estúpida esperança de que iria me encontrar. É, um tolo, não é mesmo?
Esse meu rapaz, ele trabalha pela manhã, como pedreiro. À tarde, ele entra naquele cubículo que chama de apartamento, senta naquela imundice que chama de chão e pinta aquelas coisas bonitas, como é mesmo o nome? Oh, sim, são as telas.
- Como você consegue ser tão bruto e tão sensível? - perguntei-lhe certa vez, mas ele não me ouviu. Continuou pintando, como se aquilo fosse uma resposta.
Creio que ele nunca tenha visto meus lábios se moverem. Nem sequer uma vez. Aquilo me irritava profundamente, mas, era bonito vê-lo com seus olhos escuros, concentrado, as mãos... Ah, esse é um detalhe importante. Os calos das suas mãos pareciam sumir, quando empunhava um pincel, ou quando pintava com os dedos mesmo. - É truque? Você foi mágico? - perguntei. E ele fez o truque, largou o pincel e eu vi a mão do pedreiro, retomou o pincel e eu vi a mão do artista.
Eu sabia que tinha uma janela atrás de mim. Podia sentir o sol bater, sempre que ele chegava em casa. Podia sentir um vento gelado, quando ele bocejava. Era o dia e a noite, vim a aprender, tempo depois.
Ele falava muito sobre alguém chamado, han... Dinheiro! Sim, este. Era ele quem dava as telas, mas acho que esse Dinheiro não quis mais dar telas ao meu rapaz...Ele ficava nervoso, quebrava tudo ao nosso redor. Mas não tocava um dedo em mim. Às vezes eu quase implorava para que ele o fizesse, como que para que ele se sentisse, melhor, eu não sei...
Em algum momento, algo mudou. Não sei dizer quando, mas eu via lágrimas saírem dos seus olhos, cada vez com mais frequência. Às vezes, quando o sol batia, às vezes quando sentia o vento gelado, lá estava ele, com suas bochechas molhadas. Que poderia eu dizer? Ele não queria me ver mais, nem nunca me escutara. Foi assim que resolvi deixá-lo. Eu já não tinha serventia dentro daquele... como é mesmo o nome? Apartamento! As mãos dele não me queriam mais,pois então, eu fui.
- Ei, Marcos, cadê aquele rosto que você pintava em todas as suas telas? - era uma voz feminina. Ela estava em pé em frente às telas mais recentes do meu rapaz. Ele não respondeu. Mas eu sabia que tinha ouvido a voz feminina por que ele olhou pra ela, sem expressão alguma. Assim, como ele costumava me ver, com os olhos semicerrados, protegendo-se do sol, ou enquanto esfregava as mãos uma na outra, para abrandar o frio. Ah, mas eu não deveria estar ali! Não acabei de lhe dizer que tinha fugido? Pois, é verdade, eu fugi, mas tinha que vê-lo, vez ou outra, assim, às escondidas. Vai que era eu quem o fazia chorar?
Ele tirou a roupa da voz feminina e levou-a pro quarto. E eu escutei a voz dele, misturada na voz feminina.
Creio que não fora uma noite agradável por que, foi na noite seguinte que ele resolvera pôr as ruas e avenidas de cabeça pra baixo, chamando por mim. Ao contrário do meu rosto, o da voz feminina se movia, lânguida e sensualmente. Acho que ele não gostou. Mas eu podia jurar que era mais bonito ver os olhos piscando e os lábios se movendo, assim como eu via o meu rapaz! O que ele queria? Uma expressão parada no tempo, como a minha?
Sendo assim, fui ao seu encontro, no cubículo, digo, apartamento. E ele me pareceu feliz, quando eu disse que procurava por ele. Acreditar? Não, ele não acreditou. Mas sorriu, era o que importava pra mim, ver o seu rosto em movimento, enquanto eu deitava meu rosto estático sobre aquela coisa, coisinha interessante, aquela, como é mesmo o nome? Tela! Sim, eu deitava meu rosto sobre a tela e ficava à mercê dos seus pincéis.

Dela

Entardecer


Se todos os mares fossem como os teus.
Ah, se todas as ondas brilhassem como as tuas.
Teu balanço, teu descanço,
no amanhecer e quando a noite vem.

Majestosa serenidade no crescer de tuas marés.
O verde de teu gramado
a refletir nos coqueirais.

Não, não quero me banhar.
Quero saborear-te
intocada.
Resplandecente virgem
no balanço que recai sobre tuas pedras imóveis

Menina dos olhos meus,
Nem o mais hábil dos poetas lhe faria justiça.
Por que não há justiça em tanta beleza,
beleza que não se pode ter.
És minha princesa, mas nunca será de ninguém

Encontrei-te em meu desespero,
e me deste paz.
No teu caos, me deste calma.
Na tua calma, me fez sorrir.

Doce entardecer nos olhos teus.
Do dourado, do azul, do roxo e do majestoso.
Morrer de admira-te.
E depois, nada mais poder olhar.
Cegado pela magia das curvas do teu corpo.

Envelhecer

- Sabe, acho que eu tenho um pouco de medo disso...
- Disso o que?
- Envelhecer.
- Entendo.
- Quando as pequenas coisas se tornam grandes realizações e o que, na juventude, parecia ser de grande valia, perde a importância...
- Amedrontador. Pior é ser real.
- É envelhecer ou morrer. O que você escolhe?
Sentou-se a beira da cama. Sorriu. Esse seria um belo dia para o mundo. Seria um dia marcante para Isabel. Levantou-se. Tomou um prolongado banho. Deixou a água escorregar pelo seu corpo esguio. Deliciou-se na maciez da esponja ensopada de seu sabonete favorito. Lavou os cabelos. Secou-se. Preparou o café, com canela, e o segredo especial do potinho laranja. Foi vê-lo no quarto. Ele ainda estava lá, deitado, é claro. Vestiu-se. Bebeu o café. Morreu. Na manhã seguinte a noite em que esfaqueou o marido.

Não morri

Não morri
Algo que poucos imaginaram
Vivifiquei-me em mim
Saberia se estivesse morto
Eu desci

Para o escuro
Pra depois do branco
Onde os vermes comem os decrépitos 
E entulham-se os cadáveres da depressão

Não morri
Eu lhe teria avisado
Eu lhe teria arrastado
Mas não morri
Apenas me enterrei

Me afoguei na lama suja e na agua infectada
Cortei-me com o punhal
Feri, sangrei, chorei, suei
Mas mesmo em pedaços talhados a ferro
Não morri
Antes de despi-la, contemplou seus olhos.  Perguntou-se se duzentos anos seriam suficientes para descobrir o que há  por detrás daqueles olhos cor de avelã. Por hora, se contentaria que tais olhos apenas a mirassem.

não

Não me canse.
Eu estou pra morrer e você me vem com mais neologias?
Não me venha com essa de poesia salvadora.
Eu não quero saber dos teus pecados.
Não. Não tenho tempo para seus retalhos velhos manchados de sangue e suor.
Não acredito que meu último suspiro possa esperar você terminar de declamar.
Saia! Não me canse! Não me provoque! Não morra! Me mate! Dance.


"O mar, a noite, as flores e a carruagem
 Andices andantes
Esdrúxulas.
Catacumbas.
E a dor do inverno
Raiz mate.
Caravanas. caravelas. entupimentos."
(aspas em mim)

Minha menina

Carolina, sabes que eu te amo, Carolina
Sabes, minha menina, sabes que vivo por ti
Sabes que sonho, sabes que choro
Que pela rua deserta, pela noite encoberta
encoberta pela luz do luar
Chamo teu nome

Ah, Carolina
Esses seus olhos verdes, suas mãos, suas curvas,
Esses seus negros cabelos me puxam, me prendem.
Me cegam, que só os vejo.
Só te sinto.
E não há mundo, e não há sem ti, minha Carolina

Carolina, ah, Se eu não te amasse
Que seria de mim, Carolina?
que seria sem você?
Sem os seus cabelos negros,
Sem o seu perfume doce.
De mim nada, De você o mundo.

Ah Carolina, minha menina,
Minha menina, seja minha, toda minha.
Que te faço minha, te faço rainha, te faço princesa,
Te faço minha Carolina, eterna Carolina,
A dona de todo esse mundo.
dor.
definir.
dor.
excluir.
dor.
limitar-se.
dor.
reticências.
dor.
morte. pranto. angustia. grito. anéis. martelo. dor.

Sem você

Você não sabe, mas eu te espero.
Você não vê, mas eu rego as suas rosas.
Você não sente, mas eu espalho seu perfume pela casa.
Você não ouve, mas eu chamo seu nome ao cair da tarde.
Você nem percebe mas eu te sigo, te sinto te vejo, te amo.


Quando estou em perfeito estado de sobriedade eu penso em você. Quando não eu te persigo com o olhar, com as mãos e com a garganta. Contei cada uma das horas. Me embriaguei, te envenenei e morri.
no interior. de mim. do estado. do mundo.
até a volta,
quintal
do episódio em mim
flores
da sacada daquela casa
e as árvores de fruta no pé
e algodão em flor

flores
da sacada
me perder
por entre as flores
os amores
e estes teus cabelos

Não lhe contaram?

O que é tão ruim?
O que é tão dolosoro?
O que entristece tanto?

A menina caminhava, ainda trôpega, cambaleava. Não bebera esta noite, mas a dor da notícia lhe tirava o equilíbrio. Olhos arregalados, semicerrados, petrificados, estarrecidos. Negava-se a acreditar, mas acreditara sem vacilar. Não chorou, não gritou, nem questionou. Não ajoelhou-se aos pés de seu algoz, não pediu detalhes. Apenas ouviu. Revelar, desnudar, rasgar-lhe a pele. Fechou-lhe a garganta, incharam-lhe os olhos, emudeceu. Maneou a cabeça numa tentativa de tatilmente arrumar as ideias. Tentou abrir a boca. Em vão. Entreabertos, os lábios viram ser cortado do ventre o grito. E foi. Trôpega, vacilante, sem olhar para trás.

Nunca mais passaria por ali. Nunca mais veria. Nunca mais ouviria.
A ponte, a água. O que mais haveria?

devaneios ao entardecer


O sol já se deitava sobre o mar, pintando de dourado as casinhas da vila de pescadores. Coqueirais esvoaçam suas folhas levados pelo vento. Um jovem de calça dobrada empurrava seu barco em direção ao mar, ajudado pela garota de vestido de chita e cachos soltos ao vento. André vai lançar-se ao mar e Adriana, sua noiva, ficara em casa nos bordados. Mas antes de partir, um beijo.

- Me dê esse bloco e uma caneta aí, filha! - o pedido parecia vindo de longe, mas Caio estava sentado no sofá bem atrás de mim.
- Hã? Hein? É comigo?
- O bloco e uma caneta, por favor.
- Claro, aqui está.

Foi um filmezinho embalado pela música "Carolina". A música acabou e o sonho junto. Cena 2.

A música é "Tipo um Baião". Maricélia nem sente a multidão lhe empurrar. Ela nem percebe que o trio está partindo. O carnaval parou no que o rapaz dos cabelos cacheados pôs sua língua em contato com a dela. A cidade gira bem devagar, gira, rodopia. Mas o beijo acabou. O rapaz lhe sorriu, e sumiu. Maricélia ainda acorda do transe. Nem mesmo teve tempo de puxar-lhe o braço, de dizer-lhe 'fique'. Ela se apaixonou pelo rapaz de cabelos cacheados que desapareceu e deixou em sua boca o gosto de um grande amor.

De uma brincadeira. eu e ela. uma poesia

Está bem, eu vou embora
Pra onde? Pra longe
para o fim dos meus pesadelos,
para o horizonte dos teus olhos

Não vá!
Mas por que?
Eu preciso, eu peço,
e você, está na cara, não me quer mais aqui.

Mas eu não quero você lá.
Então dê-me a resposta, para onde eu devo ir?
O que você tem contra ficar aqui?
Me acostumei
Então não posso fazer muito além de deixá-la ir


Ela

Suor

teus lábios
teu beijo
e o suor do teu rosto
o gosto de tua língua
e o calor de teu halito

nua em meus braços
tuas coxas em minhas coxas
e no nó da tua garganta
embaraçado em minhas veias

te sentir
ofegar
respirar no ritmo do teu pulsar
a pressão do teu sangue
a circular nas minhas veias