Isso aqui era pra ser um diário, não é mesmo?

Pois bem.
Tenho andado nervosa e inquieta. Dispersa e cansada.
Estou feliz, mas meus ombros doem.
Antes eu queria liberdade agora só quero mais 40 minutos de sono e alguns reais a mais na conta.
Deve ser isso que chamam de fase adulta. Ou não...

EU ESTOU IMENSAMENTE SATISFEITA POR QUE MEUS DESEJOS FORAM ATENDIDOS... MAS SOCORRO, EU QUERO VIAJAR PRA PRAIA

Não sei até onde isso faz sentido, mas e daí?
Até por que... ninguém, além de mim mesma, lê isso aqui mesmo...


Te amo, sua chata

- Ô, mainha, mande ela parar! - gritava nervoso, enquanto tentava puxar o celular da mão da irmã - Catarina, eu vô quebrar esse celular. Apague aí vá!
- Parem com essa gritaria vocês dois! - gritou a mãe da cozinha.
 A irmã dançava com o celular mão, enquanto corria do irmão, exibindo a foto onde ele vestia um vestido da mãe e usava um salto alto.
- Ô, Catarina, sua chata, pare... - ele começava a chorar.
Nesse momento a irmã se aproximou dele e falou:
- Você quer mesmo que apague? - ele, chorando e dengoso, apenas balançou a cabeça. Séria, ela continuou - Eu posso apagar mas só se você me prometer uma coisa.
- O que?
- Que você nunca mais vai ficar com vergonha de vestir um vestido.
- Como assim? - perguntou, limpando as lágrimas.
- O mundo ás vezes é lugar ruim, Lucas. Eu tô brincando com você, mas as pessoas podem ser cruéis. Agora você ainda é uma criança, mas quando crescer vai decidir se quer usar calça, se quer usar vestido, ou os dois. Um dia você vai descobrir se é hétero, se gay, se é trans e um mundo geralmente é muito malvado com quem é diferente. Então eu quero que me prometa, que mesmo se o mundo for cruel você não vai permitir que te machuquem. Me prometa agora.
- Tá bom eu prometo. - e se abraçaram - Posso contar um segredo?
- Claro. Me conta.
- Eu sei que sou criança e não entendo muito essas coisas, mas eu gosto de vestido e acho os meninos muito mais legais.
- Você ainda tem 8 anos e leva um tempinho pra entender essas coisas. Mas vá sem pressa. Eu vou te proteger sempre que puder. Te amo, pestinha.
- Te amo, sua chata.

Eu não sei que título colocar, então apenas leia. Se quiser. Se não quiser, tudo bem.

Chovia na primavera de Salvador.
Eu subia a Ladeira da Praça, em direção ao Centro Histórico, usando um guarda-chuva que me molhava mais do que me protegia. Abraçava minha bolsa de tecido, com estampa de pimentas, acarajés e baianas, comprada também no Centro Histórico. Cruzei com uma senhora que descia a ladeira. Ela devia ter o dobro da minha idade, o dobro do meu peso e seu cabelo era cerca de duas vezes maior que o meu. Ela também vinha com um guarda-chuva que mal a cobria e também abraçava sua bolsa de tecido. Não sei se ela reparou em mim. Mas eu ri da nossa semelhança.
Era só isso. Pode ir à outro sitio agora.
Alias, devo acrescentar que agora está fazendo sol.
Pronto. Agora pode ir.

à moça no parapeito

Enquanto contemplava, num misto de emoção e raiva, o pôr do sol da Bahia der Todos os Santos, senti um forte impulso para escrever. Eu não tinha folhas, apenas uma caneta. Então pedi emprestada uma folha à escritora ao meu lado que me lembrava muito uma velha e querida amiga.
O agradecimento gerou uma conversa doce. Ela me disse que morava no interior e eu contei que recentemente me mudei para o centro da capital. Eu ensinei a ela o que era performance e ela me disse que eu deveria ter coragem para sentar no parapeito da Praça da Cruz Caída. Me lembrei de tempos felizes e, por alguns minutos, sorri.
Não trocamos contatos.
Não era necessário, nem conveniente.
Aquele momento bastou por si.

Notas sobre o amor da minha vida

- Amooor, cê tá apaixonado por mim?
- Apaixonado por você eu sempre fui. Eu te amo. - me disse, com olhos brilhando.
E, com essa frase, levou eu chão.
Eu, flutuando, olhei para o abismo que se abria sob meus pés.
Sorri e fechei os olhos.
Me joguei de cabeça.
- Eu te amo. - eu disse, nua, deitada sobre seu peito também nu.

Ele não sabe, e nem eu sabia, mas faz tempo que eu o espero.


A casa cheirava a vômito, álcool e desinfetante barato.
Estava aparentemente limpa, mas o fedor estava ali presente.
Era clara e iluminada, mas havia algumas manchas de umidade nas paredes. Umas linhas do gotejar de água que escorria do teto.
Entramos pelo corredor, guiados pela prima Janice, que era a cozinheira, limpava a casa e também atendia a porta e o telefone. Prima Janice não era empregada, ela estava ali para cuidar de Julinha. Na janela da sala a enfermeira comia um sanduíche de frango e ricota. Talvez pela luz, talvez para fugir do fedor.
Entramos no quarto.
O quarto não fedia , talvez pelos cuidados com a doente. Prima Janice entrou conosco no quarto e tirou do balde de lixo um saco com papel e algodão sujos de sangue e fezes. Pôs um saco limpo no lugar e foi saindo. Ao chegar à porta, nos preveniu:
- Dizem que ela ouve, mas eu acho que não ouve não. Se vocês acham que ouve, falem. A bichinha tá precisando. Uma moça tão nova... - e saiu pelo corredor repetindo -  Uma moça tão nova...
Julinha estava deitada na cama tubular que ficava no centro de seu antigo quarto. Usava um vestido branco de linho e tinha seus longos cabelos cacheados presos num coque no topo da cabeça. Sua pele, que sempre fora tão brilhante, tão negra, estava agora um tanto acinzentada. E os lábios... Ah, esses lábios que eu tanto beijei, estavam agora ressecados e sem vida. Julinha tinha os olhos abertos, mas perdidos pelo teto. Não aqueles olhos curiosos perdidos na imensidão de sua alma escorpiana. Mas olhos petrificados, como se sua curiosa alma escorpiana sequer estivesse ali.
A enfermeira entrou no quarto sem que percebêssemos.
- Vocês são amigos da dona Júlia? - ela perguntou e eu sobressaltei. - Perdão, não me viram entrar?
- Eu não vi. Mas tudo bem. - e sorri, a fim de tranquiliza-la - Não, nós somos casados.
- Eu não entendi. Vocês duas são casadas? É isso?
- Não, nós somos casados. Nós três. Eu, Julinha e o Pedro.
- Me desculpe, é que que eu nunca vi isso. Mas o filho dela, digo, de vocês, sabe de tudo?
- Claro. Temos 2 filhos. O Arthur e o Caio. O Caio eu gerei e tá com a gente. Mas o Arthur, que Julinha gerou, os pais dela levaram quando a trouxeram pra cá. A gente achou melhor não trazer o Caio hoje. Dissemos que a mãe Júlia tá doente e o Arthur, como é mais velho, veio cuidar dela.
- Que bonito isso. Vocês parecem ser uma família bonita. Assim, diferente, e bem bonita.
- Eu agradeço. Somos muito unidos. E voltaremos a ser quando a Julinha voltar pra casa.
- Isso... Bem...
- Ela vai voltar. Ela e o nosso filho. Nós já conseguimos isso na justiça, por que ela é legalmente casada com o Pedro e os pais dela não podem afastar-los da gente.
- O moço não fala nada? - olhei para Pedro, aguardando uma resposta. Ele, que apertava os lábios e segurava o choro, só acenou um "não" com a cabeça.
- Sinto falta... - foram as únicas palavras que ele disse naquela tarde. Depois sentou-se na lateral da cama se não segurou mais o choro.
- Querida, a ambulância já está vindo. - continuei - Vem também um oficial de justiça. Mas nós queremos que você continue com a Julinha, nos ajudando a cuidar dela. Você quer vir?
- Sim, me apeguei à dona Júlia. - disse sorrindo. Eu segurei a mão dela e a abracei.
- Viu, amor, nós vamos para casa. - eu disse. E comemoramos os três ao ver Júlia esboçar um sorriso com o canto direito da boca.
Batidas à porta.
- Janice, por que tem uma ambulância aqui na porta? - ouvi a voz do pai de Julinha.
- Tio, o casal tá lá no quarto.
- O que?! - ele gritou
Batidas à porta novamente. O oficial de justiça chegou.
Eu mudei.
À escrever sobre gélidas manhãs em Londres, prefiro falar dos finais de tarde abafados no centro antigo de Salvador.
À escrever sobre cigarros com copos de whisky, prefiro descrever garrafas de cerveja estupidamente geladas acompanhadas de petiscos baratos.
À escrever dramas cheios de assassinatos, prefiro relatar a conversa de Dona Marieta com a ex esposa no ponto de ônibus, enquanto ambas esperam o ônibus para a cidade baixa.

Eu mudei.
Eu sou artista, ou pelo menos bacharela interdisciplinar em artes, de acordo com a federal.
Eu sempre esqueço de pagar a conta de luz, mesmo com o dinheiro na carteira.
Eu gasto meu salário quase todo com comida, álcool e maquiagem.
Eu tenho oito tatuagens, um piercing no septo e três furos na orelha direita.

Eu mudei.
Mas ainda choro vendo arte.
Ainda amo apagar todas as luzes da casa e dançar nua no escuro.
Ainda amo beber um bom vinho enquanto escuto MPB ou um jazz.
Ainda amo me sujar de tinta nas manhãs de sábado.

Eu mudei.
Mas nem tanto assim.

Eu matei todos eles

Creio que que matei muitas pessoas quando parei de escrever.
A Dona Neide, que me apareceu no ônibus numa tarde de quarta-feira, nunca pôde encontrar seu grande amor...
O casal Leopoldo e Daniela que eu imaginei tendo um primeiro encontro na Praça da Cruz Caída nunca teve um segundo encontro...
Aristela nunca contou ao seu pai que descobriu no banheiro da casa da avó que estava grávida...
Maria João nunca soube o que a prima Jucinha, aquela debochada, achou do seu novo corte de cabelo...
E, quando finalmente terminei de falar, ela deitou minha cabeça em seu colo e disse:

- Ô, preta, eu creio que te compreendo perfeitamente. Sabe outro dia eu estava chorando, chorando muito. Nada estava dando certo e minha vida estava a beira de uma tragédia. Mas, depois pensei: eu desejo tantas coisas, eu espero tantas coisas... Acredito mesmo que esses desmoronamentos na nossa vida vem pra testar o quanto estamos no nosso eixo, o quanto merecemos o que desejamos. Sei que isso é um pouco clichê, mas há tantas coisas no mundo que não entendemos. Tantas forças que desconhecemos. Acredito que essas forças, como tudo na natureza, tem um caráter cíclico. E, gente que deseja coisas bonitas atrai coisas bonitas. Mas, antes de chegar no paraíso a gente precisa mesmo ficar de lama até o pescoço.

Nesse momento eu me levantei, olhei bem fundo nos olhos dela e não sabia mais no que pensar além do fato de que eu estava irreversivelmente apaixonada por aquela mulher. Foi o melhor beijo da minha vida.

Mandala de areia

Eu vi uma mandala de areia.
Eu vi uma mandala de areia e me perguntei por que dedicar tempo a uma coisa tão efêmera.
Eu vi uma mandala de areia e pensei que, de certa maneira, tudo que fazemos é efêmero.
Eu vi uma mandala de areia e comecei a pensar em como a própria vida também é efêmera.

Eu vi uma mandala de areia e pensei que esse coração partido um dia se cura.
Eu vi uma mandala de areia e pensei que essa dor um dia passa.
Eu vi uma mandala de areia e pensei que essas lágrimas entaladas um dia caem.
Eu vi uma mandala de areia e pensei que esse amor enrolado de corda um dia chega.

Eu vi uma mandala de areia e, pela primeira vez desde aquela nossa infeliz conversa, sorri.