E, quando finalmente terminei de falar, ela deitou minha cabeça em seu colo e disse:

- Ô, preta, eu creio que te compreendo perfeitamente. Sabe outro dia eu estava chorando, chorando muito. Nada estava dando certo e minha vida estava a beira de uma tragédia. Mas, depois pensei: eu desejo tantas coisas, eu espero tantas coisas... Acredito mesmo que esses desmoronamentos na nossa vida vem pra testar o quanto estamos no nosso eixo, o quanto merecemos o que desejamos. Sei que isso é um pouco clichê, mas há tantas coisas no mundo que não entendemos. Tantas forças que desconhecemos. Acredito que essas forças, como tudo na natureza, tem um caráter cíclico. E, gente que deseja coisas bonitas atrai coisas bonitas. Mas, antes de chegar no paraíso a gente precisa mesmo ficar de lama até o pescoço.

Nesse momento eu me levantei, olhei bem fundo nos olhos dela e não sabia mais no que pensar além do fato de que eu estava irreversivelmente apaixonada por aquela mulher. Foi o melhor beijo da minha vida.

Mandala de areia

Eu vi uma mandala de areia.
Eu vi uma mandala de areia e me perguntei por que dedicar tempo a uma coisa tão efêmera.
Eu vi uma mandala de areia e pensei que, de certa maneira, tudo que fazemos é efêmero.
Eu vi uma mandala de areia e comecei a pensar em como a própria vida também é efêmera.

Eu vi uma mandala de areia e pensei que esse coração partido um dia se cura.
Eu vi uma mandala de areia e pensei que essa dor um dia passa.
Eu vi uma mandala de areia e pensei que essas lágrimas entaladas um dia caem.
Eu vi uma mandala de areia e pensei que esse amor enrolado de corda um dia chega.

Eu vi uma mandala de areia e, pela primeira vez desde aquela nossa infeliz conversa, sorri.
Então eu me aproximei, no intuito de ajudar aquele homem idoso e disse:
- Senhor, o senhor sabe exatamente o que está fazendo?
Ele parou o que estava fazendo, pôs-se ereto e olhou-me grave:
- Minha filha, ninguém sabe exatamente o que está fazendo.

Fazendo um balanço, acho que estou indo bem

Hoje no ônibus entrou um moço fedendo a mijo e cachaça. Eu senti nojo dele.
Então eu lembrei da aula de ontem a tarde quando conversamos sobre Manuel Bandeira, Bauman e o refugo humano gerado pelo capitalismo. Lembrei que eu comentei como a desumanização dessas pessoas revela nossa própria desumanização. Eu senti nojo de mim.

Quando desci do ônibus vi algumas pessoas sentadas atrás do hospital esperando a condução. Eles pareciam cansados. Sorri e desejei-lhes uma boa tarde. A moça de longas saias com o terço na mão que vinha logo atrás de mim não desejou boa tarde. Eu fiquei triste por ela. Eu senti orgulho de mim.

Fazendo um balanço, acho que estou indo bem.
Eu prefiro os dias sem sol. Sem chuva.
Ou eu acho que prefiro os dias de sol.
Mas o sol me dá alergia.
Coça, arde, incomoda.
Sendo assim, prefiro que ele fique escondido.

Também gosto de banhos de chuva.
Mas não é bom chegar no trabalho ou na faculdade com roupa ensopada e papel molhado.
Então prefiro que não chova.

Mas tudo isso é irrelevante.
Porque Salvador é uma cidade é bipolar.
Então se chove de manhã, à tarde faz sol e à noite volta a chover.
E se o dia amanhece aberto, depois fecha e chove. E depois abre e faz sol.
Há de se sair com roupa fresca, além de guarda-chuva e casaco.

Acho que prefiro mesmo é café.
Dias de tempo fechado. Sem chuva.
Sem greves de ônibus e com biscoitos assando no forno.
Um vinho no final do dia e um bom livro antes de dormir.

Um amor cairia bem, mas isso não é tão necessário.
O vinho, esse sim, é necessariíssimo.

Rotatividade

- Você sempre tem um favorito, não é?
- O que? - e quando me virei Raquel já estava longe, a caminho da cozinha.
- Eu disse que você sempre tem um favorito! - gritou já do outro cômodo.
- Como assim favorito?!
- Desses seus contatinhos. - disse, enquanto apoiava o ombro na porta da cozinha, o que me dava indícios de que a explicação seria longa - Sempre tem um que faz seus olhos brilharem. Aquele que você sorri quando vê a notificação e que te faz mover toda sua agenda para encontrar. Você até fica desapontada quando espera uma mensagem dele e vê que é de outro contato.
- Mas eu nunca gosto de um só.
- Eu sei. É por isso que você fica triste quando o favorito some e trata logo de arranjar outro para ocupar a vaga. Sempre tem que ter um favorito.
- O que significa isso?! - perguntei, em parte atônita e, em parte, dramática.
- Rotatividade - me respondeu enquanto saía da cozinha com um pedaço de pão e um copo de cerveja, caminhando em direção ao sofá.

Por amores já chorei que nem viúva

"Fiquei imaginando isso... Tu no meu colo, eu te fazendo carinho. A gente conversando sobre alguma  viagem... Tu fechando os olhos, eu te beijo e tu sorri... Depois te deixo dormir..."

E foi essa a primeira coisa que eu li na manhã ontem. Eu já tinha caído no sono quando ele enviou. Leonardo era tão doce. No inicio ele era só mais um match no Tinder. Mas, algo em sua conversa, em sua preocupação. Eu fui me apaixonando por ele. Confessei assim que me dei conta, ou melhor assim que ele disse que amava quando eu o chamava de meu anjo. E eu te amo. Eu disse sem pensar duas vezes, embora tenha me arrependido em seguida e, como de costume, perguntei a mim mesma que merda eu havia acabado de fazer. Mas ele, um anjo, disse que também me amava e que estava reunindo coragem para para contar. Isso aconteceu 3 dias atrás.
Ontem eu reuni, além de coragem, dinheiro e fui até a casa dele. Fiquei 7h40mim num avião. Ele, tal qual Nina de Chico Buarque, já havia me mostrado na tela a cidade o bairro a chaminé da cada dele. Quando desci na rodoviária eu sabia exatamente para onde ir. Eu só não sabia que antes de vê-lo veria sua esposa no jardim brincando com 2 menininhas e um bebe. Eu fui pelos fundos e coloquei fogo na casa. Ninguém morreu. Isso não faz de mim uma pessoa ruim, faz?
Salvador fede a excrementos.

Esse provavelmente não seria um bom slogan para a prefeitura ou para uma agência de viagens. Algumas pessoas não entenderiam porque é necessário dizer que uma cidade tão linda fede.
Mas fede. E muito.

Em alguns lugares, como o que me deu esse lampejo, uma ruela do Centro Histórico por onde saem os que subiram o Plano Inclinado rumo à Cidade Alta, o fedor é bem literal. As fezes e marcas de urina são claramente vistas nos cantos das paredes e nos pedaços de papelão espalhados pelo chão. O turista mais desavisado pode não ter muita sorte. Os nascidos e criados pulam os excrementos tal como fogueiras no São João.

Enquanto pensava essas coisas, passou por mim um homem fazendo zig zag numa bicicleta, embora estivéssemos numa passagem estreita e cheia de pedestres.
- Quer atropelar as pessoas?! - gritou um homem grisalho que não aparentava ter mais que 60 anos.
- Ele a ainda está aprendendo a pedalar - emendei.
O homem, já uns alguns metros à nossa frente, virou seu rosto para trás, e em meio àquele zig zag nauseante e gritou:
- Vocês são todos pretos!
- Obrigada. - respondi sorrindo.
Mas uma moça ao meu lado não distorceu, assim como eu, o significado daquela tentativa de insulto e gritou em resposta.
- E você é branco! Todos os brancos são porcos!

Eu não sei o sentido que ela quis dar à palavras porcos.
Eu não concordo inteiramente com ela.
Mas eu sei que, além da cidade, algumas pessoas em Salvador também fedem a excrementos.