Notas sobre o amor da minha vida

- Amooor, cê tá apaixonado por mim?
- Apaixonado por você eu sempre fui. Eu te amo. - me disse, com olhos brilhando.
E, com essa frase, levou eu chão.
Eu, flutuando, olhei para o abismo que se abria sob meus pés.
Sorri e fechei os olhos.
Me joguei de cabeça.
- Eu te amo. - eu disse, nua, deitada sobre seu peito também nu.

Ele não sabe, e nem eu sabia, mas faz tempo que eu o espero.


A casa cheirava a vômito, álcool e desinfetante barato.
Estava aparentemente limpa, mas o fedor estava ali presente.
Era clara e iluminada, mas havia algumas manchas de umidade nas paredes. Umas linhas do gotejar de água que escorria do teto.
Entramos pelo corredor, guiados pela prima Janice, que era a cozinheira, limpava a casa e também atendia a porta e o telefone. Prima Janice não era empregada, ela estava ali para cuidar de Julinha. Na janela da sala a enfermeira comia um sanduíche de frango e ricota. Talvez pela luz, talvez para fugir do fedor.
Entramos no quarto.
O quarto não fedia , talvez pelos cuidados com a doente. Prima Janice entrou conosco no quarto e tirou do balde de lixo um saco com papel e algodão sujos de sangue e fezes. Pôs um saco limpo no lugar e foi saindo. Ao chegar à porta, nos preveniu:
- Dizem que ela ouve, mas eu acho que não ouve não. Se vocês acham que ouve, falem. A bichinha tá precisando. Uma moça tão nova... - e saiu pelo corredor repetindo -  Uma moça tão nova...
Julinha estava deitada na cama tubular que ficava no centro de seu antigo quarto. Usava um vestido branco de linho e tinha seus longos cabelos cacheados presos num coque no topo da cabeça. Sua pele, que sempre fora tão brilhante, tão negra, estava agora um tanto acinzentada. E os lábios... Ah, esses lábios que eu tanto beijei, estavam agora ressecados e sem vida. Julinha tinha os olhos abertos, mas perdidos pelo teto. Não aqueles olhos curiosos perdidos na imensidão de sua alma escorpiana. Mas olhos petrificados, como se sua curiosa alma escorpiana sequer estivesse ali.
A enfermeira entrou no quarto sem que percebêssemos.
- Vocês são amigos da dona Júlia? - ela perguntou e eu sobressaltei. - Perdão, não me viram entrar?
- Eu não vi. Mas tudo bem. - e sorri, a fim de tranquiliza-la - Não, nós somos casados.
- Eu não entendi. Vocês duas são casadas? É isso?
- Não, nós somos casados. Nós três. Eu, Julinha e o Pedro.
- Me desculpe, é que que eu nunca vi isso. Mas o filho dela, digo, de vocês, sabe de tudo?
- Claro. Temos 2 filhos. O Arthur e o Caio. O Caio eu gerei e tá com a gente. Mas o Arthur, que Julinha gerou, os pais dela levaram quando a trouxeram pra cá. A gente achou melhor não trazer o Caio hoje. Dissemos que a mãe Júlia tá doente e o Arthur, como é mais velho, veio cuidar dela.
- Que bonito isso. Vocês parecem ser uma família bonita. Assim, diferente, e bem bonita.
- Eu agradeço. Somos muito unidos. E voltaremos a ser quando a Julinha voltar pra casa.
- Isso... Bem...
- Ela vai voltar. Ela e o nosso filho. Nós já conseguimos isso na justiça, por que ela é legalmente casada com o Pedro e os pais dela não podem afastar-los da gente.
- O moço não fala nada? - olhei para Pedro, aguardando uma resposta. Ele, que apertava os lábios e segurava o choro, só acenou um "não" com a cabeça.
- Sinto falta... - foram as únicas palavras que ele disse naquela tarde. Depois sentou-se na lateral da cama se não segurou mais o choro.
- Querida, a ambulância já está vindo. - continuei - Vem também um oficial de justiça. Mas nós queremos que você continue com a Julinha, nos ajudando a cuidar dela. Você quer vir?
- Sim, me apeguei à dona Júlia. - disse sorrindo. Eu segurei a mão dela e a abracei.
- Viu, amor, nós vamos para casa. - eu disse. E comemoramos os três ao ver Júlia esboçar um sorriso com o canto direito da boca.
Batidas à porta.
- Janice, por que tem uma ambulância aqui na porta? - ouvi a voz do pai de Julinha.
- Tio, o casal tá lá no quarto.
- O que?! - ele gritou
Batidas à porta novamente. O oficial de justiça chegou.
Eu mudei.
À escrever sobre gélidas manhãs em Londres, prefiro falar dos finais de tarde abafados no centro antigo de Salvador.
À escrever sobre cigarros com copos de whisky, prefiro descrever garrafas de cerveja estupidamente geladas acompanhadas de petiscos baratos.
À escrever dramas cheios de assassinatos, prefiro relatar a conversa de Dona Marieta com a ex esposa no ponto de ônibus, enquanto ambas esperam o ônibus para a cidade baixa.

Eu mudei.
Eu sou artista, ou pelo menos bacharela interdisciplinar em artes, de acordo com a federal.
Eu sempre esqueço de pagar a conta de luz, mesmo com o dinheiro na carteira.
Eu gasto meu salário quase todo com comida, álcool e maquiagem.
Eu tenho oito tatuagens, um piercing no septo e três furos na orelha direita.

Eu mudei.
Mas ainda choro vendo arte.
Ainda amo apagar todas as luzes da casa e dançar nua no escuro.
Ainda amo beber um bom vinho enquanto escuto MPB ou um jazz.
Ainda amo me sujar de tinta nas manhãs de sábado.

Eu mudei.
Mas nem tanto assim.

Eu matei todos eles

Creio que que matei muitas pessoas quando parei de escrever.
A Dona Neide, que me apareceu no ônibus numa tarde de quarta-feira, nunca pôde encontrar seu grande amor...
O casal Leopoldo e Daniela que eu imaginei tendo um primeiro encontro na Praça da Cruz Caída nunca teve um segundo encontro...
Aristela nunca contou ao seu pai que descobriu no banheiro da casa da avó que estava grávida...
Maria João nunca soube o que a prima Jucinha, aquela debochada, achou do seu novo corte de cabelo...