A casa cheirava a vômito, álcool e desinfetante barato.
Estava aparentemente limpa, mas o fedor estava ali presente.
Era clara e iluminada, mas havia algumas manchas de umidade nas paredes. Umas linhas do gotejar de água que escorria do teto.
Entramos pelo corredor, guiados pela prima Janice, que era a cozinheira, limpava a casa e também atendia a porta e o telefone. Prima Janice não era empregada, ela estava ali para cuidar de Julinha. Na janela da sala a enfermeira comia um sanduíche de frango e ricota. Talvez pela luz, talvez para fugir do fedor.
Entramos no quarto.
O quarto não fedia , talvez pelos cuidados com a doente. Prima Janice entrou conosco no quarto e tirou do balde de lixo um saco com papel e algodão sujos de sangue e fezes. Pôs um saco limpo no lugar e foi saindo. Ao chegar à porta, nos preveniu:
- Dizem que ela ouve, mas eu acho que não ouve não. Se vocês acham que ouve, falem. A bichinha tá precisando. Uma moça tão nova... - e saiu pelo corredor repetindo -  Uma moça tão nova...
Julinha estava deitada na cama tubular que ficava no centro de seu antigo quarto. Usava um vestido branco de linho e tinha seus longos cabelos cacheados presos num coque no topo da cabeça. Sua pele, que sempre fora tão brilhante, tão negra, estava agora um tanto acinzentada. E os lábios... Ah, esses lábios que eu tanto beijei, estavam agora ressecados e sem vida. Julinha tinha os olhos abertos, mas perdidos pelo teto. Não aqueles olhos curiosos perdidos na imensidão de sua alma escorpiana. Mas olhos petrificados, como se sua curiosa alma escorpiana sequer estivesse ali.
A enfermeira entrou no quarto sem que percebêssemos.
- Vocês são amigos da dona Júlia? - ela perguntou e eu sobressaltei. - Perdão, não me viram entrar?
- Eu não vi. Mas tudo bem. - e sorri, a fim de tranquiliza-la - Não, nós somos casados.
- Eu não entendi. Vocês duas são casadas? É isso?
- Não, nós somos casados. Nós três. Eu, Julinha e o Pedro.
- Me desculpe, é que que eu nunca vi isso. Mas o filho dela, digo, de vocês, sabe de tudo?
- Claro. Temos 2 filhos. O Arthur e o Caio. O Caio eu gerei e tá com a gente. Mas o Arthur, que Julinha gerou, os pais dela levaram quando a trouxeram pra cá. A gente achou melhor não trazer o Caio hoje. Dissemos que a mãe Júlia tá doente e o Arthur, como é mais velho, veio cuidar dela.
- Que bonito isso. Vocês parecem ser uma família bonita. Assim, diferente, e bem bonita.
- Eu agradeço. Somos muito unidos. E voltaremos a ser quando a Julinha voltar pra casa.
- Isso... Bem...
- Ela vai voltar. Ela e o nosso filho. Nós já conseguimos isso na justiça, por que ela é legalmente casada com o Pedro e os pais dela não podem afastar-los da gente.
- O moço não fala nada? - olhei para Pedro, aguardando uma resposta. Ele, que apertava os lábios e segurava o choro, só acenou um "não" com a cabeça.
- Sinto falta... - foram as únicas palavras que ele disse naquela tarde. Depois sentou-se na lateral da cama se não segurou mais o choro.
- Querida, a ambulância já está vindo. - continuei - Vem também um oficial de justiça. Mas nós queremos que você continue com a Julinha, nos ajudando a cuidar dela. Você quer vir?
- Sim, me apeguei à dona Júlia. - disse sorrindo. Eu segurei a mão dela e a abracei.
- Viu, amor, nós vamos para casa. - eu disse. E comemoramos os três ao ver Júlia esboçar um sorriso com o canto direito da boca.
Batidas à porta.
- Janice, por que tem uma ambulância aqui na porta? - ouvi a voz do pai de Julinha.
- Tio, o casal tá lá no quarto.
- O que?! - ele gritou
Batidas à porta novamente. O oficial de justiça chegou.

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